Um mundo e muitas vozes: da utopia à distopia?
Os dilemas da interação humano-máquina típicos da ficção científica nunca
foram tão reais. Avanços no campo da tecnologia da informação e da
comunicação intensificam a superação de barreiras espaço-tempo e conectam
indivíduos em escala inimaginável. Essas mesmas tecnologias, porém,
promovem o controle quase que absoluto da vida social, cultural, econômica e
política, por meio de sofisticados sistemas automatizados de coleta, análise e
fluxo de dados.
As contradições e distorções que emergem desse cenário estão historicamente
presentes na pauta da INTERCOM ao longo dos seus 43 anos, investigadas
sob múltiplas perspectivas em suas ações e grupos de pesquisa. Neste
momento, porém, diante da dimensão e influência que têm adquirido, urge
ressaltá-las como tema central do congresso 2020. “Um mundo e muitas vozes:
da utopia à distopia?” é um chamamento à reflexão científica acerca da zona
cinzenta entre extremos na qual nos encontramos. No título, expressa-se a
intenção primeira do evento: revisitar o Relatório MacBride após quatro
décadas do seu lançamento, em um ambiente de intensas mutações no
universo comunicacional.
Em 1980, o documento elaborado pela Unesco apresentava o resultado de um
ousado e amplo debate realizado pela Comissão Internacional para o Estudo
dos Problemas da Comunicação, presidida pelo Prêmio Nobel da Paz de 1974,
Seán MacBride, e composta por especialistas de 16 países, entre eles o
jornalista e escritor Gabriel García Márquez. O relatório intitulado originalmente
Many voices, one world: communication and society today and tomorrow foi
publicado em português, em 1983, com o título Um mundo e muitas vozes:
comunicação e informação na nossa época, e anunciava as bases para uma
nova ordem mundial da informação e da comunicação (Nomic), a qual seria
mais democrática, justa e eficiente, que respeitaria ao mesmo tempo a
pluralidade, a diversidade e a identidade dos processos e fluxos
comunicacionais. Os desafios foram cuidadosamente mapeados pela
comissão, bem como as estratégias para superá-los. Ao apontar quais
caminhos seguir, o horizonte utópico apresentado pelo estudo soava factível.
O Relatório MacBride foi tão propositivo e democrático em termos de uma
maior participação da sociedade e de países periféricos na produção e
circulação de conteúdos comunicacionais, tais como jornalismo,
entretenimento, formação e cultura, que, como forma de protesto, os Estados
Unidos se retiraram da Unesco. A alegação foi de que as recomendações do
documento prejudicavam seu comércio internacional de bens culturais e
informacionais. Resultado: os caminhos apontados pelo relatório jamais
chegaram e ser efetivamente implementados, sequer pelos demais países.
Nessas últimas quatro décadas, o ambiente da comunicação mudou
significativamente e os desafios se intensificaram ou se transfiguraram.
Surgiram e se consolidaram grandes corporações especializadas em produzir,
minerar e refinar aquela que passou a ser uma das principais mercadorias em
tempos pós-industriais: a informação. O mecanismo do seu funcionamento
reside basicamente em três elementos: (i) o uso de aparelhos móveis em
escala global com acesso à internet; (ii) a explosão das mídias sociais; (iii) e a
desconfiança em relação às instituições democráticas. Seus proprietários
adquirem status de chefes de Estado a impor uma governança (des)regulatória
global, que não apenas desafia a soberania de países como coloca em xeque a
própria pertinência da ideia de Estado-nação.
No ritmo frenético das redes sociais digitais, novas relações de poder são
estruturadas a reforçar assimetrias e desigualdades em termos de fluxos
comunicacionais. A instrumentalização das interações sociais se evidencia
como ferramenta estratégica indispensável ao capitalismo de dados, em que
diversidade de vozes e pluralismo de pontos de vista flutuam ao sabor do
mercado.
Assim, expectativas de democratização da comunicação perdem espaço para a
construção de uma espécie de modelo panóptico ideal, de tal forma que a
palavra “controle” passa a adjetivar os mais diversos fenômenos nesse cenário
– da publicidade à própria democracia. Populariza-se, portanto, a hipótese
segundo a qual vivemos uma distopia sem precedentes. Será que não já se
passou o momento de se propor uma nova-Nova Ordem Mundial da
Informação e da Comunicação?
É preciso ir além da dicotomia e problematizar, conforme sugerido pelo tema
do congresso, "Um mundo e muitas vozes: da utopia à distopia?". Se a
realidade se impõe por vezes desanimadora, revisitar o Relatório MacBride é
buscar inspiração para persistir por um mundo mais justo, mais humano, mais
democrático e menos instrumentalizado. A despeito das contingências
adversas, é missão da ciência e de nós, cientistas da Comunicação, fazer
deste um mundo melhor, por meio da investigação com rigor teórico-
metodológico e do compartilhamento de conhecimento qualificado.
Esse desafio é assumido pela INTERCOM, entidade comprometida com a
interdisciplinaridade e, por isso, com as múltiplas dimensões por meio das
quais é possível interpretar, explicar e apresentar soluções aos mais variados
problemas da sociedade. A compreensão dos fenômenos associados a esse
cenário pressupõe a comunicação como chave-analítica incontornável.