“Um mundo e muitas vozes: da utopia à distopia?” é o tema do congresso Intercom 2020 – uma frase que revisita a criação do Relatório McBride após 40 anos e também sugere uma reflexão sobre as ideias utópicas que o documento trazia, relativas à sociedade. “Um mundo e muitas vozes” – a definição do relatório para a comunicação, além de se referir ao cenário global, não poderia ser mais condizente com a sociedade brasileira, em contextos históricos passados e atual. A mesa contou com representantes ilustres do meio Acadêmico, da Intercom e governo, tendo marcado presença João Carlos Salles, Reitor da UFBA; Suzana Oliveira Barbosa, Diretora da Faculdade de Comunicação da UFBA; Zulu Araújo, Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon; Giovandro Marcus Ferreira, Presidente da Intercom; Margarida M. Krohling Kunsch, Presidente do Conselho Curador da Intercom; Ivanise Hilbig de Andrade, Coordenadora do Congresso. A mesa foi marcada também por uma bela apresentação do violonista Mário Ulloa, músico e professor costa-riquenho radicado na Bahia.
Sendo um dia de marcos inéditos para o Intercom – primeira vez que o congresso é realizado de maneira virtual e sediado pela UFBA – sentimentos de agradecimento e comemoração deram o tom para as falas dos participantes da mesa. A professora Ivanise Andrade lembrou que tudo o que já estava sendo encaminhado para a organização teve que se reinventar para adequar-se à uma nova configuração, o que trouxe inovações e desafios. “Estamos no Brasil inteiro, no mundo. O Intercom ficou global, e pela primeira vez em sua história, virtual”. A diretora da Facom, Suzana Barbosa, ressaltando a importância da adaptação, lembrou que é necessária – apesar da situação – a reinvenção: “Da necessidade deve se fazer virtude”. Enfatizando a importância dos espaços, a diretora saudou a faculdade, ao expressar ao público seu prazer em “recebê-los a partir de nossa casa”. Suzana, juntamente com Ivanise e Giovandro, juntaram-se à mesa virtual estando presentes no auditório da Facom.
Representante da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, o Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, comentou sobre a transição vivida pelo Brasil nos últimos anos. Fazendo jus ao nome do Congresso, essa mudança é o que ele chama “da utopia à distopia, somado a uma pandemia”. “Há muito tempo eu não vejo um tema ser tão pertinente à realidade em que vivemos”, disse. O recente caso de Beto, homem negro assassinado em um mercado de Porto Alegre, é o que reforça a distopia presente na sociedade brasileira: “Revelou o quão presente está no Brasil o que chamamos de racismo estrututal”.
Tempos sombrios de negacionismo e desinformação é como o professor e presidente da Intercom Giovandro Ferreira definiu o contexto em que se encontra um país com tais questões e problemas sociais. “As adversidades do presente nos instigam a revisitar o legado que marca a trajetória da nossa entidade, sempre pautada pela defesa inegociável da democracia e do conhecimento científico na construção de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa e igualitária”. O presidente reforçou o papel e a responsabilidade que o Congresso tem com a sociedade, e expressou seu desejo de que as reflexões desses dez dias de Intercom possam “ajudar nossa sociedade a ser mais plural, com múltiplas vozes, proporcionando caminhos para o combate ao racismo, ao machismo e outras formas de violência”
Nesse contexto, a Presidente do Conselho Curador da Intercom, Margarida Kunsch comentou sobre as improbidades do jornalismo e da circulação da informação. “Ainda vivemos na atualidade esse tipo de perseguição”, afirmou, se referindo à violações dos direitos à liberdade de expressão e de imprensa, como censura e repressão. Ela lembrou ainda que, relacionado a esses fatores, o fenômeno das fake news ganha força, assumindo um viés de construção e sendo – nas palavras da presidente – desinformação proposital. “Teremos dias melhores e tudo isso um dia terá que ser revertido”, disse, enfatizando a democratização da informação como parte da missão da Intercom.
“Eu brincava que seria um evento de proporções intergalácticas, mas não imaginava que seria virtual”, disse o reitor da Universidade Federal da Bahia, João Carlos Salles. Para ele, é natural que a Universidade seja alvo de ataques, pois é lugar de resistência, espaço forte de manifestação e mobilização política – e a própria realização de congressos como o Intercom comprova isso. Sem medir palavras para definir seu orgulho de estar em um lugar especial de força, cultura e reflexão, o reitor lembrou que o espaço da Universidade é “singular e exemplar da confrontação entre gerações, saberes, da circulação de conceitos e pessoas”. Salles exaltou a cidade de Salvador e a UFBA que são, em suas palavras, lugares privilegiados pela cultura e pelo trabalho acadêmico de qualidade. “Sejam bem vindos ao centro do universo que é a Bahia”.
Palestra de abertura com prof. Muniz Sodré
Em seguida, dando continuidade à cerimônia de abertura, o jornalista, sociólogo, professor e grande referência no campo da comunicação e cultura, Muniz Sodré, apresentou a conferência de abertura. Sobre o tema “Um mundo e muitas vozes: da utopia à distopia?”, o moderador Giovandro Ferreira introduziu os objetivos do Relatório McBride. O documento da UNESCO publicado em 1980, do qual participaram da comissão nomes como Gabriel García Márquez, Hubert Beuve-Méry e Betty Zimmerman, tinha entre suas metas a democratização e consolidação de uma nova ordem da informação.
Nesse cenário apresentado pelo presidente, Muniz discorreu e trouxe reflexões sobre a importância do relatório que, segundo ele, guardava os traços de uma utopia cristã. “Esse relatório correspondia à declaração da UNESCO sobre os princípios fundamentais relativos à contribuição dos meios de comunicação para o fortalecimento da paz, da contribuição internacional, da promoção dos direitos humanos, da luta contra o racismo e o apartheid além de preconizar a proteção aos jornalistas de todo o mundo”. Segundo Muniz, o relatório seria utópico, já que se refere à uma realidade imaginada, para se pensar uma presente realidade.
“Quarenta anos depois, estamos indo em direção à utopia ou à distopia?”, questionou. O conferencista trouxe reflexões acerca do conceito de utopias e distopias, e criou um panorama histórico com referências da filosofia e literatura, como as ideias de Gaston Bachelard e obras utópicas renomadas, como “O Cândido” de Voltaire, “Júlia ou a Nova Heloísa” de Rousseau, e “As viagens de Gulliver” de Jonathan Swift. De uma época mais contemporânea, citou “Admirável Mundo Novo” de Huxley e “1984” de Orwell. Por fim, chegando à atualidade, Muniz destacou os desafios de uma sociedade midiatizada e dataficada, regida pelas tecnologias da informação e pelo capitalismo de plataforma. “As plataformas digitais constituem um novo tipo de vida, com redes sociais planetariamente controladas. Os novos editores – os reais editores – se chamam algoritmos, e um algoritmo não tem nenhuma responsabilidade social. A palavra, o discurso, a linguagem vêm sendo regidos por uma distopia realizada, que é a distopia da vigilância total, da biometria totalitária e das autocracias políticas”, disse.
O jornalista, sociólogo e professor terminou sua conferência – uma verdadeira aula – com uma frase do Papa Francisco: “Sejamos capazes de reagir com um novo compromisso de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” Segundo Muniz, a relação entre essa exortação e o tema do Intercom se dá na sugestão de que “talvez o essencial não seja um mundo e muitas vozes, mas sim muitos mundos e muitas pontes […]. A comunicação de hoje talvez vá nos ensinar a desaprender”, concluiu.
Reveja aqui a cerimônia completa.